sábado, 21 de novembro de 2015

Exumar cadáver fede

Ophelia - Everett Millais

Exumar cadáver fede! Era nisso pensava o Velho Viana no mesmo instante em que riscou seu último cigarro acompanhado de uma dose de uísque vencido com três pedras de gelo. Não fosse isso não teria percebido o tempo passando, porque ainda creditava um acréscimo de fé naquele acordo feito em 2007. Então a tela mental do ortodoxo indivíduo começou a matizar os tons desbotados das aulas ocasionadas por um propósito único de reaproximação de corpos. Ele gostava de ser observado e mais ainda se exibir frente àquela que sabia fazer versos e cartas delongadas denunciando a imaturidade e ingenuidade adolescente do corpo em ebulição, mas tinha também consciência de sua maldade e sentiu retroagindo ao primeiro plano em que se encontrava agora, um espasmo de medo pela amarga e lenta vingança que os anos lhe presenteara. A Princesa de Aiocá, agora, estava em seu palácio e parecia-lhe que debaixo d’água e por cima da areia, turvo era, porém mais calmo; embora oblíquo em sua visão parecesse um cataclisma equacionado na matemática errante e convocado pelo tempo que lhe restara dedicado a respirar-lhe na presença inexistente. Odofiaba! Ele também gostava de sofrer ao recordar tudo isso, mas de algum modo alimentava sua alma boêmia e embevecida por rememorar a saudade do que poderia ter sido. E tudo era confuso, sobretudo honesto, e isso o tornava mais confuso ainda, porque vivendo num mundo de aparências quem se cristaliza transparentemente corre o risco de quebrar-se e não mais, nunca mais voltar a ver o MaR. Sonoro, profundo e secreto... Ele ainda acreditava no mar e nos fazia crer que havia uma praia onde cada grão de areia pudesse representar um pedaço bi partidarizado de toda eloquência frenética que acometia aqueles instantes. Lembrou-se do bazar dos sonhos perdidos, aquele onde os relógios rodam para trás e as escadas fogem dos pés... Mas quantos nomes, cores e tamanhos assumira a Princesa quase dez anos depois? Parecia uma memória de vidas passadas, mas era assim que sua consciência bailava sobre o ritmo das águas negras e geladas daquele mar profundo que pedia-lhe: mergulha. Ele podia apenas escolher não pensar nisso, mas a involuntariedade do seu desejo lhe dominava mais e mais a cada tragada e cada gole seco do uísque diluído. Até que o cigarro amargou, quando apercebeu-se da piúba miudinha entre os dedos nicotinizados quase inertes, olhou pela janela que nem existia e viu que estava preso numa masmorra do castelo da Princesa. Não sabia se debaixo da água ou por cima da areia, já não sentia o pulmão e era... desesperador. Viu locas, pensou nos perfumes, espelhos, flores e serenatas e todas aquelas lembranças agrediam seu córtex pré frontal. Lembrou ainda que havia na geladeira uma taça com morangos, foi recuperá-los mas estavam mofados. Correu a vista pelo lar e a parede amarela se entrelaçava com a parede de pedra causando-lhe uma sensação obtusa de paralelismo temporal e espacial. Ouviu ao longe uma voz que profetizava o tempo semelhante a um rio que corre perenemente e teve mais medo ainda. Teve medo de ver o corpo distendido e soterrado nos escaninhos da alma embalsamada porque no fundo sabia que exumar cadáver fede.

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