sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Carta para Carlos Magno


Meu bom irmão eleito, que saudade.

Espírita, vivi todo esse tempo à espera de sua carta que nunca veio cansando aquela velha máxima de que o telefone só toca de lá para cá. Como é difícil estabelecer um contato com o silêncio, ouvindo a nossa própria voz e fazendo de contas que ela é, também a sua, falando aos nossos corações... Foi nesses anos esmaecidos pelas procelas que nos acometem que recebi no camarim de Elba Ramalho uma mensagem sua no meu celular pedindo para que o considerasse o irmão que a vida lhe negara, lembra? Eram tempos difíceis, mas nada lhe parecia impossível! Rapidamente você conseguiu destruir a imagem sisuda do “brinquedo do cão”... Essa missiva com M de memória certamente se alicerçará assim: cheia de reticências... Você foi uma das primeiras pessoas a confiar na minha escrita, me incentivou a escrever uma novela, e falou-me da importância desses registros grafados de maneira singular. Falávamos tanto nos capítulos – da vida e do livro, enquanto comíamos aquele ovo cheio de lipídios a entupir nossas artérias... E era tão gostoso. Até hoje ainda o faço, mas não é tão gostoso quanto àqueles que saboreei em sua companhia. Acho que perdi-me no Tempo Tempo Tempo Tempo.

Na verdade, desde que você se foi, tenho pensado muito na quantidade de amigos que descobri em seu entorno. Aquela despedida ao pingo do meio dia, ou melhor “ameidiinha” me deixou muito confuso. Você sabe que quase não os encontro mais?! Eles quase nem falam em você... E quando falam é querendo ser você... Tsc Tsc... Devem ter se acostumado com a sua assombrosa ausência. Eu sei que essa não é uma boa notícia, mas por aqui pouca coisa evoluiu, sobretudo se pensarmos essa coisa referindo-se à especificamente à conduta humana.

Eu consegui terminar o curso de Letras, fiz uma pós e estou voltando para fazer Letras novamente, dessa vez com habilitação em Língua Portuguesa. Finalmente seu conselho faz sentido, mas sinto que perdi muito tempo, até envelheci e já me cansei de algumas babaquices que ontem faziam sentido, deixei passar algumas oportunidades... Merci? Mas sei também que o mesmo cara que cuida de você aí, olha por mim aqui. Continuo ouvindo os mesmos discos e concordando com Elis Regina, mas que nunca: nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam, não.

É meu irmão... São tantos assuntos... Tantos muitos que nem sei como falar... Não podíamos ter vivido melhor. Concorda? Você continua representando a maior expressão de força em nosso meio. Não o tenho como modelo para tudo, é claro, mas você sabe do que estou falando e isso é outra história. Libertário, canhestro, pai, irmão, amigo e mestre, eram tantos em um só que lhe tornaram incomparável. E isso ainda incomoda! De quando em quando vejo atos falhos nos discursos que ecoam invocando seu nome em vão. Tenho muita curiosidade em saber como você vive hoje, e lamento por aqueles que não o conheceram... Tantas vezes nossa mãe e eu pedimos para sonhar com você e todos os dias acordávamos tomando um choque de realidade desconstruindo todos os pensamentos que tentamos maquiar, manobrar, mudar...

Por aqui pouca coisa mudou. Repito. Não me entenda, entretanto, como pessimista ou dramático, mas lembre daquela sua frase “se as mudanças acontecem sempre em favor do pior, que permaneçam as coisas como estão” e deixe Caetano cantar que nada há de novo sobre o sol. As pessoas continuam se expondo nas redes sociais sem nenhum zelo por suas intimidades. Estão cada vez mais viciadas, dependentes e carentes... Para completar até andam caçando Pokémon, ricocheteadas pela infantilidade tardia e inoperante. Eu diria que estão bem piores que você, que costumava fazer um fake fingindo sair de circulação no mundo digital, mas continuava lá de olho em tudo. Desculpe contar esse segredo, mas ele já não é mais nosso, apenas. Estamos nos aproximando da política, aquela “degeneração gordurosa das organizações da incompetência” e como é de costume, aqui, as pessoas passam a viver em função disso e oportunizam-se para fazer ecoar todo tipo de mazela social. Desde a caça aos pobres até os sem fim...

No trabalho, para quem abraçou nosso ofício, continuamos naquela vida severina, mas gratos pelo pão e pelo café de todo dia. Em todos os setores dessa existência continuamos medíocres: opressores e oprimidos pela radicalização violenta de tudo com todos. Continuamos maledicentes, receptivos a doenças no corpo e na alma – o que é pior ainda. Quase não temos tempo para ajudar ninguém, afinal, ninguém nos ajuda. Cada dia está mais difícil professar a fé, ainda bem que você não teve que passar por isso porque você foi quase o revés de Clarice Lispector em nosso meio, não é?

Pois, pois... Muito pouco evoluímos. Mas eu estou feliz, na medida do possível. Tenho uma filha linda, se chama Walquiria – igual minha primeira novela, àquela que lhe dediquei, mas não lhe deu tempo de ler. Depois dessa fiz outra. Não, não outra filha, outra novela. Ainda nem ao menos paguei Semântica para brincar assim com você. Muito raramente, também, encontro sua filha, mas ela cresceu e como qualquer adolescente que descendesse geneticamente de você, carregaria traços tão seus que custa olhá-la sem se emocionar. Acho que tudo isso se resume em uma palavra: saudade. E junto dela, a necessidade sôfrega de manter-lhe vivo nos livros, cachimbos, uísques e escaninhos.


PS.: Se você encontrar Ranielle, por favor diga-lhe... Que permanecemos por aqui “na sagrada saudade que deixa continuar.”