sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Nem tudo que reluz é ouro

Tinha o cérebro oco, parecia-lhe que sua cabeça estava em jejum.
Clarice Lispector in Onde estivestes de noite.


Retomando a velha questão onde me oportunizei debater no texto “adiposidades literárias”, publicado aqui anteriormente, gostaria de hoje convidar vossa senhoria a dirigir um olhar cuidadosamente calculado às análises literárias das quais volta e meia somos reféns. Principalmente quando esse sequestro ideológico se dá através das obras de autores de tendências contemporâneas, como Clarice Lispector, Caio F. Abreu e outros.

Se há por parte de alguns escritores o excesso cultista no viés da linguagem rearranjada em ornamentos dispensáveis, há muito mais por parte dos leitores a tentativa conceptista de nos convencer de algo que nem ao menos fora dito, senão por eles próprios.

Tzvetan Todorov em A literatura em perigo nos chama a atenção para o papel do ensino de Literatura em uma sociedade onde ler poemas e romances nos aponta a uma crítica emergente da condição humana, seja ela de forma tradicional ou moderna; entretanto, a sensação que temos é que depois de Freud e a psicanálise nada escapa ao crivo da sexualidade. Evidentemente a culpa dessa necessidade forçada em engajar a literatura de qualquer tipo no tripé psicanalítico não é de Freud, mas dos leitores que se auto proclamam freudianos e se comportam de maneira automatizada pela ciência moderna.

Esta, a meu ver, é uma tentativa não somente forçosa, mas tosca que nos serve de engodo às leituras alheias. Não se trata de censurar texto A ou B, mas de ter a maturidade em ler e interpretar a literatura sem obrigatoriamente erotizar o texto. Muitas vezes essa busca desesperada em explicar o espaço ou a ação de determinadas personagens nesse espaço sob um viés erótico acaba reduzindo ou mesmo excluindo o que o autor quis dizer (e disse), para dar vez e voz ao devaneio do leitor.

A Literatura, sendo uma das sete Artes, está contextualizada em um tempo histórico e com as vivências do autor; ela não nasce de um sopro divino favorecido pelo acaso, mas de uma elaboração contextualizada que nos permite, através do texto, detalhar um olhar sociológico, antropológico e também, é claro, psicanalítico, quando é pertinente.

Imaginemos, portanto, através de um exemplo grosseiro criado agora, uma suntuosa dama de vermelho sentada em seu apartamento faraônico, a meia luz, com um cigarro entre os dedos. Esse poderia ser o início de qualquer romance; logo, essa descrição seria conduzida pelos megalomaníacos da psicanálise a interpretar coisas do tipo: Humm, o vermelho representa isso, o cigarro é cilíndrico, então é fálico, a ponta do cigarro estava acesa? Se sim... E por aí segue uma gama de argumentos (leia-se artifícios) para justificar a mulher sentada fumando. Com isso, esquecem esses analistas de buscar compreender o óbvio: por que ela estava sozinha em companhia apenas do cigarro, por exemplo.


Por fim, gostaria de dizer que esse texto recalcado não está direcionado a ninguém especificamente, mas a uma época: a época em que vivemos onde toda figurinha de dente escovado gosta de brincar de psicanalista e por isso se sente um grande gênio. E aos que assim se comportam, recordo as palavras de João Cabral de Melo Neto “Não se deve poetizar o poema, isso tiraria sua beleza natural, como quem ousa perfumar uma rosa.”

DICA DE LEITURA:
Poesias Amorosas/eróticas de Gregório de Matos. Adianto que nem precisa de Freud para ver tanta... Parei por aqui!